terça-feira, 15 de janeiro de 2013

QUE DELÍCIA..............


No laboratório da carne: a comida do futuro

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ALEX RENTON
DO "OBSERVER"
O banquete do futuro está servido em uma sala branca e de temperatura controlada, na Universidade de Tecnologia de Eindhoven, Holanda. Há um filé ao molho tártaro feito com carne de proveta, retorcida engenhosamente para formar a palavra "meat" [carne].
Há "amuse-gueules" de "carne de fruta". O sushi, com listras verdes e rosadas, vêm de um peixe vegetariano geneticamente modificado chamado biccio, cuja carne é apropriadamente verde e rosada. Para beber, há um vinho tinto programável: com uma passagem pelo micro-ondas, ele pode adquirir uma variedade de sabores, de Montepulciano a Syrah. Para as crianças, há grilos doces fritos, refrigerantes programáveis e "almôndegas mágicas" --que são feitas de carne artificial cultivada com células-tronco, reforçadas com Ômega 3 e vitaminas e "estalam na boca". Delicioso.
Francois Lenoir/Reuters
Cientista holandês Mark Post exibe amostras de carne produzida em laboratório
Cientista holandês Mark Post exibe amostras de carne produzida em laboratório
Nenhum desses alimentos está pronto para o mercado. As almôndegas na mostra de alimentos do futuro em Eindhoven são feitas de massa plástica; a carne tricotada é feita, previsivelmente, de lã em tom entre o vermelho e o rosa. Mas as ideias não representam uma fantasia. Koert van Mensvoort, professor assistente na universidade, as define como "quase possíveis".
Mensvoort, que também é o cérebro por trás do site nextnature.net, parada obrigatória para os interessados em novidades tecnológicas, reuniu sua turma de desenho industrial com engenheiros biotecnológicos, especialistas em marketing e um professor de filosofia moral, encarregando-os de criar amostras de alimentos que estivessem, tecnologicamente, perto de nossas mesas.
Mas a verdade é que carne artificial ainda está distante. Coberturas de pizza podem estar mais próximas. O dr. Mark Post, principal responsável pela produção de carne de proveta na universidade holandesa, prometeu que o primeiro hambúrguer artificial, feito com 10 bilhões de células criadas em laboratório, estaria "pronto para a grelha" até o final de 2012.
Mas quando visitei a universidade, o projeto não estava pronto. Post (que anteriormente produzia válvulas de carne artificial para uso em cirurgias cardíacas) e outros cientistas holandeses estão no momento tentando resolver o problema de como transformar a "carne" de gelatina em algo com estrutura aceitável, como os antiquados músculos. A resposta pode estar nos choques elétricos.
Essa busca é essencial para o futuro dos alimentos. A questão não está no que pode ser feito, mas sim no que estaremos dispostos a aceitar. Alguns cientistas alertam que tentar copiar as carnes a que os humanos estão acostumados é uma empreitada fútil --outro sintoma de nossa nostalgia ignorante e insustentável quanto à comida. "É simplista dizer que aquilo que é natural é bom, rejeitar a globalização e recuar a um mítico passado no qual a comida era 'verdadeira e honesta'", diz Louise Fresco, intelectual holandesa que dirigiu o departamento de inovação alimentar da ONU e serve como consultora da organização.
"É o caminho usual, tentar reproduzir aquilo que você conhece", afirma Mensvoort. "Mas não é assim que surge a inovação. Começamos com carruagens sem cavalos, mas no final do processo tínhamos os automóveis. 'Natural' é uma grande trapaça de marketing, e a mais bem sucedida de todas".
Os problemas tecnológicos na produção desses alimentos de alta tecnologia desaparecem quando comparados aos problemas que o setor enfrenta junto aos consumidores --o "fator repulsa", como costumam dizer os cientistas envolvidos na tecnologia de alimentos em todo o mundo.
A repulsa dos consumidores causa grande cautela nas empresas de maior porte, exatamente aquelas que precisariam bancar os orçamentos de pesquisa e desenvolvimento dos novos alimentos, e elas mantêm grande sigilo quanto ao seu trabalho em alimentos geneticamente modificados, nos Estados Unidos. Há ímpeto quanto a esses projetos porque está claro que nove bilhões de seres humanos não poderão continuar comendo alimentos produzidos da maneira tradicional, especialmente carne.
O planeta não tem capacidade para isso. As empresas da Holanda precisam atender a uma população cujo consumo per capita de carne de porco é o maior da Europa, mas não financiam publicamente o trabalho de Mensvoort em Eindhoven ou quaisquer outras pesquisas sobre produção de carne artificial. Quem banca esse trabalho é o governo holandês.
Mensvoort trata com desdém o nervosismo das companhias de alimentos, especialmente quando há tanta coisa em jogo, destacando que "se a indústria lê um nome como 'sushi farmacêutico, a reação é proibir que seu nome seja associado a isso. Eles têm medo". Tenho experiência disso em primeira mão: em uma conferência científica sobre alimentos e nanotecnologia (engenharia em nível submolecular), um executivo da maior companhia europeia de alimentos me implorou para não mencionar em um artigo a presença dele no evento.
É tudo culpa da Monsanto. "Foi um erro histórico que os organismos geneticamente modificados (OGM) começassem pelos herbicidas, e que o governo dos Estados Unidos tenha concedido às companhias liberdade para introduzi-los", diz a professora Fresco, que deseja alimentar não apenas os ricos mas os famintos de todo o futuro mundo de nove bilhões de pessoas.
A Monsanto, dr. Frankenstein de nossa era, decerto gerou publicidade lastimável por conta de sua comercialização descuidada e indiferente de pesticidas geneticamemente modificados nos Estados Unidos e Índia. O subsequente colapso na fé do público quanto à ciência biotecnológica, diz Fresco, não prejudica só o desenvolvimento de novos alimentos para os países ricos. Também está retardando o combate à fome. Centenas de milhões de africanos que dependem de um alimento básico pouco confiável, a exemplo da mandioca, ficam privados de tecnologias que poderiam torná-la resistente a doenças e pragas. Arroz geneticamente modificado poderia propiciar um aumento de 40% no rendimento das safras.
"Os cientistas africanos ficam indignados por serem privados dessa tecnologia", diz Fresco. Ela concorda em que existem riscos, mas acredita que a capacidade de controlá-los é maior que nunca, agora. Ainda que os cientistas holandeses prefiram não usar o termo "geneticamente modificado", o silencioso consenso entre eles é o de que essa tecnologia virá, o mundo precisa dela, e a Europa terá de aceitar a realidade ou ficará para trás.
Será que preocupações éticas poderão estimular a aceitação de novas tecnologias alimentares pelo público? Cor van der Weele, professora de filosofia humanista na Universidade de Wageningen, está convencida de que isso procede, ao menos no caso da carne artificial. "As pessoas verão os benefícios morais das carnes cultivadas. Retirar células-tronco de um porco, em lugar de matar milhões de porcos em fábricas, já é uma ideia mais atraente para os consumidores".
Ela cita estudos de viabilidade quanto ao cultivo de carne em "biorreatores" abastecidos por luz solar e posicionados em regiões desertas: a redução no uso de recursos seria espantosa. "Seriam necessários apenas 1% da terra e 2% da água que a produção tradicional de carne requer. E a redução na emissão de gases de efeito estufa seria de 90%", afirma.
Em 2035, comer carne de verdade pode ser tão moralmente questionável quanto comer foie gras hoje --e igualmente dispendioso. Como diz Post, "um carnívoro que ande de bicicleta prejudica muito mais o meio ambiente que um vegetariano que dirija um Hummer".
Tudo que sabemos ao certo é que as refeições do futuro serão mais caras e não terão forma de pílula. Essa é uma missão realmente impossível: o departamento de pesquisa de equipamento de combate do Departamento de Defesa norte-americano desistiu de trabalhar para produzir cápsulas de alimentação com valor de duas mil calorias (elas pesariam cerca de 250 gramas). Além do que, os seres humanos gostam de comer. E ainda que o setor de alimentos seja excelente em nos vender coisas de que não precisamos, quem manda continua a ser o consumidor.
Nossos desejos quanto à comida estão repletos de paradoxos. Adoramos novidade mas a nostalgia e a tradição nos fascinam. Queremos pagar menos mas obter qualidade ainda melhor. Queremos comida natural e saudável, ainda que as duas coisas não sejam necessariamente sinônimas. Queremos comer melhor do que as gerações passadas mas reverenciamos aquilo que elas costumavam comer. Nostalgia, neofilia, hipocondria e esnobismo propelem o caçador-coletor moderno, e a isso devemos somar o ceticismo profundo quanto à ciência, os supermercados e as maquinações do "complexo industrial alimentar".
Nenhum desses fatores deve mudar nos próximos 25 anos. Mas a oferta de alimento mudará --e mais radicalmente do que em qualquer momento do século 20. A mudança do clima e o fim da era dos combustíveis fósseis baratos para transporte e produção de fertilizantes estão alterando o sistema de alimentação. As três safras alimentícias mais importantes do planeta --arroz, trigo e milho-- são cultivadas quase todas nos países que sofrem mais risco em função da alta da temperatura, e as previsões são sombrias. Não é possível cultivar milho em temperatura superior a 30 graus, por exemplo.
Todos os futurólogos da comida concordam em que não podemos continuar comendo como estamos fazendo até agora. Mas ainda que o lobby orgânico esteja convencido de que retornar ao básico pode resolver os problemas mundiais, nenhum cientista sério acredita que a agricultura tradicional ainda funcione. E por isso teremos de aceitar o novo e o "antinatural", se desejarmos continuar nutridos. O público já aceita como naturais muitas coisas que não o são --do lodo gerado por bactérias que dá volume à maionese de baixas calorias aos produtos químicos que oferecem sabor mais aguçado do que o dos ingredientes naturais que simulam (leia o rótulo da próxima vez que comprar "óleo de trufas".)
O jornalista Josh Schonwald constatou que os pesquisadores biotecnológicos dos Estados Unidos já estão bem adiantados no desenvolvimento da nutrição do futuro. Como revela em seu livro "The Food of Tomorrow", os laboratórios da Universidade da Califórnia em Davis estão desenvolvendo genes para criar "uvas com mistura de águas-vivas, tomates com mistura de carpas"... e alface que durará semanas no refrigerador.
Talvez já existam porcos modificados por engenharia genética para crescer cinco vezes mais rápido. Como revelou uma campanha do Greenpeace, já existe um tomate que dura mais por ter sido modificado com genes de um linguado do Ártico, enquanto em Israel um cruzamento de tomate com manjericão foi aprovado em testes com consumidores.
RELAXAMENTO
Na opinião de Schonwald, tudo que o setor está esperando é um relaxamento das regulamentações governamentais, para tornar o desenvolvimento desses alimentos financeiramente viável. Schonwald se converteu à causa, ao escrever o livro. No começo ele era cético com relação à tecnologia, mas agora acredita que a rejeição categórica aos OGM é "irresponsável, perigosa e desumana". Foi a promessa de adaptar safras para que forneçam vitaminas essenciais aos milhões de crianças mais pobres que o fez mudar de ideia.
Mas a alta tecnologia costuma deixar os pobres na mão, historicamente. Fertilizantes químicos e pesticidas criaram dependência e poluição. Avanços revolucionários na medicina são coisa de país rico: as companhias farmacêuticas pesquisam mais sobre distúrbios de ereção do que sobre malária. Mas cultivar e promover mutações em espécies alimentícias é o único plano convincente para alimentar todos os moradores do planeta.
Não há como levar adiante a atual cultura da alimentação. Não parece possível que a comida volte a ser tão barata quanto foi no ano 2000. Na Europa Ocidental, hoje, gastamos entre 10% e 15% de nossa renda domiciliar em comida --há 60 anos, o percentual era de 60%. Tim Lang, professor de política alimentar na City University de Londres, diz que comida barata nunca foi realista, porque no momento não pagamos seu preço real. "Externamos os custos para o meio ambiente, para lugares distantes e para mão de obra barata usando a cadeia alimentar".
O crescimento populacional bastaria por si para elevar os preços dos grãos. A Organização de Alimentos e Agricultura das Nações Unidas (FAO) calcula que o planeta precisará produzir 40% a mais em 2050, e a mudança do clima já está afetando as principais regiões produtoras de alimentos. Lang disse ao governo britânico que a cultura alimentar dependente do petróleo é coisa do passado, e que trocar a biodiversidade por justiça alimentar "conduzirá ao armagedon". Quando a comida do futuro chegar, a maioria de nós não poderá escolher o que estará comendo.
Tradução de PAULO MIGLIACCI.
A Folha de São Paulo

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